A minha avó costumava dizer-me que quando as pessoas morrem, quem cá fica diz sempre coisas muito boas das que partiram. “Eram sempre todos muito bonzinhos” – dizia no seu tom mais indignado. “Quando eu morrer não digam essas mentiras, não finjam que eu era coisas que não era.” Acrescentava.
A minha avó adorava falar sobre a morte enquanto jantávamos as duas na mesa da cozinha. “E não se esqueçam de me tirar o pace maker quando for cremada!”. Eu ficava incomodada com a conversa, e ela ria-se.
Nunca fui a neta preferida, nem nunca fomos as melhores amigas. A nossa ligação nunca foi a mais bonita nem um conto de fadas. Passámos muito tempo do seu fim de vida meio chateadas. Porque a minha avó era teimosa, difícil de lidar, tendia para a má língua, e quando queria era mesquinha e vingativa.
A minha avó faleceu há pouco mais de 48 horas e só agora é que me apercebi que isto aconteceu. Só agora compreendi porque é que são todos “tão bonzinhos” quando morrem. Talvez a minha avó nunca se tenha despedido de ninguém com quem estivesse magoado, mas eu fi-lo hoje.
Há dois meses a minha avó foi internada e eu pensei para mim própria, num momento egoísta porque no fundo todos queremos sentir-nos em paz connosco próprios, “perdoo a minha avó”. Acho que no fundo estava a tentar convencer-me a mim própria que isso era verdade.
Hoje despedimo-nos de vez e de repente já não me sinto zangada. De repente todas as memórias menos boas começaram a ser sobrepostas por todas aquelas que foram felizes.
Vivi 20 anos com a minha avó e podia escrever um livro com todas as memórias que tenho. Ela nunca foi uma pessoa de mimos, no fundo sempre foi bastante fria e pragmática. Ralhava muito comigo e com a minha irmã e não me lembro de brincar connosco ou levar-nos a passear. A minha avó nunca foi a avózinha fofinha que dá mimos e faz biscoitos aos netos. Era uma mulher que estava no cimo do pedestal, a matriarca. De bengala na mão, comandava o seu império de Frazões. E todos nós respondíamos perante ela, quase sempre sem questionar. Tinha de ser tudo à sua maneira ou estava o caldo entornado. Era ciumenta e teimosa todos os dias.
Mas a minha avó também era uma mulher cheia de sentido de humor. Demorei a perceber em miúda, mas era forte. Apesar do que podia aparentar devido à sua fraca estatura física, era uma mulher que tinha ultrapassado alguns dos maiores desgostos que esta vida nos pode pregar. E sempre que caía, nós achávamos que seria a última vez, e ela voltava sempre a levantar-se para nos provar que estávamos enganados. Encarava sempre estas desgraças com humor.
Era uma mulher extremamente inteligente, interessante, opinativa e versátil. Às vezes ficávamos a falar no seu quarto até às 3 da manhã sobre tudo o que nos vinha à cabeça. Eu sentada no chão e ela sempre no alto da sua poltrona. Tinha imensas histórias para partilhar e coisas para ensinar. Tinha muito medo da falta de comida e todos os dias me mandava comprar pão. Eu nunca podia dizer à minha avó que gostava de algum prato se não ela mandava fazer até eu me enjoar. Ainda hoje não consigo comer feijão frade.
Ela gulosa, gostava de comer e beber bem. Gostava de festas e adorava estar rodeada de pessoas. Adorava passear e ir ver o mar. Estava sempre bem vestida e de cabelo arranjado. Não tinha medo de pedir ajuda. Muitas foram as noites que fiquei acordada com ela nas suas más disposições. Muitos foram os segredos e confissões que partilhámos.
Perdi a conta das vezes que a ouvi a refilar e “falar mal” de todos nós. E se havia coisa que a minha avó gostava de fazer era falar. Falava por todos nós. Era capaz de estar um dia inteiro a falar ao telefone.
Acho que conheci tudo (ou quase tudo) sobre a minha avó. O que gostava, o que não gostava. Para uma senhora da sua idade, era muito “prá frentex” e mente aberta. Podíamos falar de todos os assuntos que consigo imaginar.
Tantas coisas que conheci da minha avó mas a imagem que quero guardar é a dos bons momentos. E de como uma mulher criou e uniu uma família inteira. Como sozinha educou duas das três filhas. Tínhamos sempre a porta aberta em casa da avó e, apesar de não ser uma pessoa de demonstrar muito afeto, ela gostava de todos nós. Quero guardar as memórias de todas as vezes que nos fez rir à gargalhada e de todas as vezes que se riu connosco. E de como superou todas as maleitas desta vida.
Lembro-me sempre de quando chegava de férias, a minha avó dizia-me que tinha tido saudades minhas. Que para ela, a casa sem mim não tinha a mesma vida. E era provavelmente a única pessoa que gostava de me ouvir cantar.
Quando era adolescente, muitas vezes chateava-me com a minha avó, como é normal quando duas pessoas vivem e passam muito tempo juntas. Ficávamos um, dois dias a trocar poucas palavras e depois tudo voltava ao normal. Não pedíamos desculpas uma à outra porque sabíamos que não havia necessidade. Quando estava mesmo chateada e a minha avó reconhecia que errava, chamava-me para ao pé dela e dizia “Não estejas chateadinha com a avó, não?” e eu dizia sempre em tom impaciente “nãão…”. E ficava tudo bem.
Não sinto que tenha ficado algo por dizer entre nós, não sinto que falte nada. E mesmo que a tenha visitado poucos nos últimos meses, por um lado isso ajuda-me a que a memória que tenha dela seja a de uma Milu cheia de vida e refilona como sempre foi.
Não sinto que tenha faltado um pedido de desculpas.
Eu não estou chateadinha consigo, avó. Eu guardo-a a si e aos nossos bons momentos num canto especial de mim. E os nossos momentos serão sempre isso mesmo, meus e seus.
Obrigada pelo exemplo de mulher que foi. Por me ter chamado à razão quando precisei, mesmo que muitas vezes na altura não compreendesse o porquê. Obrigada por sempre me ter incentivado a escrever, a fotografar, a fazer e a ser o que gosto.
Agora está bem. Agora está em paz. Até sempre.
14 de outubro, 00:28
* Pouco antes de falecer, a minha avó já estava muito farta da vida e sentia-se bastante incapacitada e farta de cá estar. Falou-me de um fado que gostava muito. Não se lembrava do nome, só sabia que era de um fadista homem e que era sobre a vida acabar e o coração parar de bater. Procurámos muito e não encontrámos. Ontem por acaso encontrei este fado na Internet. Não sei se era a ele que a minha avó se referia ou não, mas achei que com certeza iria gostar de o ouvir.
Estranha forma de vida, Alfredo Marceneiro
“Foi por vontade de Deus
que eu vivo nesta ansiedade.
Que todos os ais são meus,
que é toda a minha saudade.
Foi por vontade de Deus.
Que estranha forma de vida tem este meu coração:
vives de vida perdida;
Quem lhe daria o condão?
Que estranha forma de vida.
Coração independente,
coração que não comando:
vives perdido entre a gente,
teimosamente sangrando,
coração independente.
Eu não te acompanho mais:
para, deixa de bater.
Se não sabes aonde vais,
porque teimas em correr,
eu não te acompanho mais
Se não sabes onde vais:
para, deixa de bater,
eu não te acompanho mais.”

