Quero escrever sobre o que sinto, mas faltam-me as palavras. O mundo hoje parece mais triste. O mundo hoje está mais triste. É domingo e o céu está encoberto. As lojas estão fechadas e não há carros na rua. O mundo parou ao saber da tua morte.
“A tua morte”. A voz fica trémula e o coração aperta. Parte-se em dois. A dor de que sempre ouvi falar, finalmente chegou o dia de a sentir. Um turbilhão de sentimentos que, ao não caberem no meu peito, escorrem-me cara abaixo na forma de lágrimas.
Sim, choro por um gato, faço luto por um gato, perco a vontade de levantar-me por um gato.
Por vezes sinto-me ridícula, como sei que muitos me acham. Tanto mal no mundo, pessoas a perder pessoas, mães que enterram filhos, mortes, crimes e guerra. E eu a chorar por um gato. Por outro lado, para mim, o Giló foi e é muito mais que um gato. Foi um primeiro filho que amei e eternamente amarei.
Faço pausas na escrita, para fazer parar esta vontade urgente de chorar e libertar tudo o que sinto.
Estou triste, estou incompreendida, estou desfeita.
Entendo que não me compreendam, até há bastante pouco tempo também não o fazia. Eu cresci com o Giló. Aprendi a amar um ser vivo mais do que a mim própria. Prendi o significado de amor incondicional. Porque o Giló amava-me e acarinhava-me quando eu não achava ser possível. Fazia-me companhia quando me sentia sozinha, e não me julgava. Independentemente daquilo que eu fizesse. Tenho pena daqueles que nunca sentiram e talvez nunca sentirão um amor tão doce, tão puro.
Faleceu-me um familiar e eu não sei como reagir. Não sei como aceitar este vazio que me acompanha. Não sei já dormir de porta fechada. Não sei como planear a minha vida sem pensar que às 20 horas tenho que estar em casa para lhe dar a insulina. Não sei como lidar com a perda de um animal de estimação. E como eu o estimava!
Tento fugir aos clichés de “enquanto eu viver, ele vive em mim”, mas todas as coisas que faço, lembro-me dele. Abro a porta com cuidado com medo que ele fuja, deixo a porta da casa de banho aberta para o caso de ele querer entrar e fazer-me companhia.
Um amor tão doce. Um amor que custa. Já há muitos meses que me mentalizava que este dia iria chegar. Mas é tão diferente a dor que imaginamos, do que a que realmente vimos a sentir.
Foi, ao mesmo tempo, a decisão mais fácil e a mais difícil que tive de tomar. Em apenas dois dias o Giló perdeu toda a sua massa muscular e ficou um esqueleto com pêlo. Disseram-nos que o Giló já cá não estava em espírito, que era apenas um corpo sem consciência. E era. Deitei-me com ele, frente a frente, e ainda assim senti que ele me via, com os seus olhinhos molhados. Que me sentia, e que sentia a minha dor. Ficámos a sós e, sem saber se ele me entendia – Eu nem sei se ele alguma vez me entendeu – agradeci-lhe por me ter escolhido e por diariamente me mostrar que não tinha mudado de ideias. Pedi-lhe desculpa por todas as vezes que lhe ralhei sem razões, pedi desculpa por se por acaso não fiz tudo o que podia e por momentos ter cansado do fardo diário de ter que ser a sua enfermeira. Disse-lhe que podia desistir, que não ficava magoada por o fazer.
O Giló teve que ser eutanasiado. As suas veias já estavam secas e sem glóbulos vermelhos, fazendo com que a injeção mortífera tivesse que ser dada diretamente no coração. Estive com ele o tempo todo, até estar completamente sedado e pronto para ir.
Não me quero prolongar nas palavras, se ficasse a escrever tudo aquilo que sinto, este texto acabaria por se tornar um livro. “Giló e eu”. “A história de como um gato mudou a minha vida”, e de todos aqueles que tiveram o prazer de o conhecer.
Não choro pela tristeza da morte. Não choro pela decisão que tomei, eu só quis acabar com o seu sofrimento. Não choro por ter sido uma das experiências mais dolorosas por que já passei. Choro com saudade, choro ao relembrar todos os momentos maravilhosos que tivemos juntos. Foram tantos e ao mesmo tempo tão poucos.
Não tenho vergonha de admitir que gosto mais do Giló do que de muitas pessoas que conheço.
Agora vou fazer o meu luto e permitir-me sentir o que é a dor. Vou deixar-me ficar triste enquanto sentir necessidade de tal. Porque um dia eu vou deixar de estar triste, mas nunca me irei esquecer do Giló.
Do meu tigrinho, que miava e vinha para o meu colo quando me via a chorar. Que gostava de dormir com a cabeça no meu peito. Que ficava chateado quando chegava a casa e eu não o cumprimentava. Que era louco por biscoitos de queijo. Que permitiu que pessoas maravilhosas como a Joana e o Diogo, e toda a equipa do Hospital do Gato, entrassem na minha vida. Que gostava da dinâmica e tinha MESMO que dormir entre mim e o Leonardo. Que fugia na hora de tomar os medicamentos mas tomava-os sem se queixar. Que viveu quatro meses sozinho e ficava visivelmente feliz quando percebia que era sábado e que ia dormir comigo. Que sujava o caixote todo e estragou os sofás. Que era ciumento e possessivo. Que deixa fazer-lhe tudo, até dançar ao som de Lemon. Que foi sem dúvida o melhor gato do mundo. O meu Giló. Que não será esquecido. Que guardarei no coração. O meu gato-gato, que nunca desistiu de lutar, mesmo quando o seu corpo já estava tão debilitado que não conseguia resistir. Foram oito anos cheios de emoções maravilhosas. E, sem dúvida, que neste último ano foi o melhor que eu tive.
Ao meu Gi. Com todo o amor deste mundo e d’outro.
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